Brincar: uma experiência de cultura

By Sueli Marciale
Sep 14th, 2018

Brincar é um meio de aprender a viver e de proclamar a vida. Um direito que deve ser assegurado a todos os cidadãos, ao longo da vida, enquanto restar dentro do homem a criança que ele foi um dia e enquanto a vida nele pulsar. Quem vive, brinca.”  (Tânia Fortuna, 2008)

A brincadeira, apesar de ser estreitamente ligada à infância e às crianças, sempre foi uma atividade significativa na vida dos homens em diferentes épocas e lugares. É marcada pela continuidade e pela mudança por não ser simplesmente reproduzida, mas recriada a partir do que a criança traz de novo com seu poder de imaginar, criar, reinventar e produzir cultura (aqui entendida como um conjunto de práticas, conhecimentos e artefatos construídos e acumulados pelos sujeitos nos contextos históricos e sociais em que se inserem).

Mesmo sem estar brincando com o que chamamos de brinquedo, a criança brinca com a cultura, pois não só explora o mundo ao seu redor, mas também comunica sentimentos, ideias e fantasias, compartilhando o real e o imaginário nesse espaço chamado brincadeira.

Brincar é, pois, uma experiência de cultura importante não apenas nos primeiros anos da infância, mas durante todo o percurso de vida de qualquer ser humano. Ao brincar, aprende-se a linguagem dos símbolos e pode-se entrar no espaço original de todas as atividades sociais e culturais, atribuindo-lhes novos significados.

Se antes a criança era vista como um ser marcado pela ingenuidade e pela ignorância, cujo desenvolvimento dependia estritamente do adulto, hoje ela assume o lugar de protagonista, alvo preferencial da sociedade de consumo; se antes a família e a escola eram instituições privilegiadas para a socialização das crianças, hoje elas contam com o aporte da mídia eletrônica, com a qual têm interagido diariamente.

Nesse contexto, o mundo contemporâneo, marcado pela falta de espaço nas grandes cidades, pela pressa, pela influência da mídia, pelo consumismo e pela violência, acaba se refletindo na forma como as crianças brincam.

Se relembrarmos, há até bem pouco tempo muitas das relações aconteciam entre os amigos de uma mesma faixa etária, crianças do mesmo prédio, bairro ou colégio. Elas estavam sempre juntas para se distrair e passavam o tempo brincando, trocando experiências. As brincadeiras precisavam de uma grande dose de imaginação para acontecer. As ruas eram ambientes um pouco mais seguros, com menos fluxo de desconhecidos e de veículos, lugar ideal para todo tipo de brincadeiras, jogos e o que mais viesse à mente das crianças.

Nos últimos anos, porém, tem sido notável a mudança na experiência do brincar. Brincadeiras de rua estão tão esquecidas que muitas crianças nem mesmo as conhecem.  Aquelas desenvolvidas em coletividade, praticadas por adultos e crianças e, geralmente, transmitidas de geração para geração, como roda, ciranda, amarelinha, pular elástico, cabo de guerra, passa anel, cabra-cega e boca-de-forno, estão sendo substituídas por brinquedos eletrônicos que se fazem mais atraentes. As crianças de hoje vivem uma espécie de insatisfação permanente, pois fica cada vez mais difícil acompanhar o ritmo do brinquedo ou do jogo que está na moda, tal sua velocidade de atualização.

As novas formas de se comunicar por meio de brincadeiras com jogos eletrônicos e as comunicações online, via internet, são meios relevantes para a evolução humana. No entanto, cabe reconhecer que, assim como vêm ampliando a capacidade de interação social de forma virtual, vêm também reduzindo essas capacidades presencialmente.

Mesmo vivendo imersos em novas tecnologias e tendo dificuldades de encontrar um espaço para brincar, é necessário lembrar que as brincadeiras no coletivo são de grande valor para o desenvolvimento da interação social da criança.

A brincadeira deve ser levada a sério – e isso vale para todas as faixas etárias – na escola e em casa. O que antes era tão simples e natural nas crianças, hoje precisa ser estimulado. Além de construir conhecimento e dar sentido ao mundo, é na brincadeira, também, que a criança resolve problemas, lida com regras, interage com outras crianças, explora diferentes movimentos e amplia as possibilidades comunicativas. Por esses motivos, brincar é parte fundamental do desenvolvimento infantil.

Nesse sentido, é de extrema importância que escola e família entendam em que contexto a criança está inserida e propiciem brincadeiras, livres ou dirigidas, que auxiliem no desenvolvimento da autorregulação, da confiança e de outros aspectos sociais e emocionais.

Atentos a esse contexto atual e a estudos realizados, os educadores do Colégio São Luís estruturam tempos e espaços do brincar, procurando envolver alunos e famílias na ressignificação dessa experiência de cultura. São oferecidos recursos e oportunidades de explorar brincadeiras com as quais as crianças possam interagir com os colegas e com os adultos fora dos espaços de sala de aula.

Na rotina da escola, a brincadeira do “faz de conta”, com crianças de 2 a 6 anos em espaços estruturados, possibilita o exercício da capacidade de planejar e de fantasiar situações lúdicas. Aos educadores, permite perceber como elas compreendem e apreendem informações e vivências sociais.

Outra atividade oferecida é o resgate de brincadeiras antigas a partir de algumas perguntas feitas às crianças: por que os pais podiam brincar nas ruas e hoje isso não acontece? Como e do que brincavam seus avós? As brincadeiras eram em grupo ou individuais? Quanto tempo podia ser destinado às brincadeiras e aos brinquedos?

Esses questionamentos, somados ao conhecimento e à prática de brincadeiras antigas, possibilitam às crianças a ampliação do universo lúdico e cultural. Também promovem interação com outras gerações, estimulam a criatividade e a reconstrução de cultura. As brincadeiras antigas, aparentemente simples, constituem fontes de estímulo ao desenvolvimento cognitivo, social e afetivo da criança, além de uma forma de autoexpressão. O “Família na Escola”, que acontece aos sábados para alunos da Educação Infantil ao 5.º ano do EF I e suas famílias, é mais um evento do Colégio para promover a integração e diversão por meio de brincadeiras.

Entendemos, dessa forma, que dedicar tempo a essa diversão com as crianças é tão importante quanto ensiná-las a brincar, pois demonstra a disponibilidade dos adultos e contribui para o fortalecimento de vínculos e para o desenvolvimento da confiança.

Brincando, elas reconhecem o outro na sua diferença e na sua singularidade e as trocas inter-humanas aí partilhadas podem auxiliar no combate ao individualismo presente em nossa época, restituindo-lhes o senso de pertencimento. A brincadeira, em tempos tão hostis, pode contribuir para trazer para a realidade o desejo de um mundo melhor, no qual todos estejam incluídos.

PARA BRINCAR COM AS CRIANÇAS: O Colégio São Luís preparou uma série de vídeos que incentivam momentos de brincar em família. Foram preparados junto com seus estudantes e mostram o passo a passo de brincadeiras que podem ser realizadas em casa com as crianças. Clique aqui para assistir.

Por Sueli Marciale, Diretora da Educação Infantil, Ensino Fundamental I e Integral do Colégio São Luís

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981.
BAUMAN, Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2007.
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Summus, 1984.
BORBA, Ângela M. O brincar como um modo de ser e estar no mundo. In: BRASIL, MEC/SEB. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade/ organização Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Rangel, Aricélia Ribeiro do Nascimento – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.
BROUGÈRE, G. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 2008.
CANDAU, V. M. Reinventar a Escola. Petrópolis: Vozes, 2000.
CHÂTEAU, J. O Jogo e a criança. São Paulo: Summus, 1987.
ELKIND, David. Sem tempo para ser criança: a infância estressada. Porto Alegre: Artmed, 2003.
FORTUNA, Tânia e outros. Pedagogia do brincar. São Paulo: Mediação, 2012.
GIRARDELLO, G. & FANTIN, M. Liga, roda e clica: estudos em mídia, cultura e infância. Campinas: Papirus, 2008.
KRAMER, Sônia. A infância e sua singularidade. In: Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade/ organização Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Rangel, Aricélia Ribeiro do Nascimento – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
KISHIMOTO, T. M. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2000.
OLIVEIRA, Vera Barros de; BORJA SOLE, Maria; FORTUNA, Tânia Ramos. Brincar com o Outro – Caminho de Saúde e Bem-estar. Vozes, 2010.
PERROTTI, Edmir. A criança e a produção cultural. In: A produção cultural para as crianças. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990 .
SANTOS, A. M.; GROSSI, P. K. Infância comprada: hábitos de consumo na sociedade contemporânea. In: Revista Virtual Textos & Contextos, n. 8, 2007. Disponível em: <http://www.alana.org/banco_arquivos/arquivos/docs/biblioteca/artigos>.